Dizem que o povo do Vale do Paraíba tem o costume de comer “formigas”.
Bem não é qualquer tipo de formiga. São Içás, também conhecidas como Tanajuras; a femea da saúva. Os machos são os bitus.
Quem mora por aqui não se admirou quando em maio deste ano a ONU sugeriu “Comer insetos” para reduzir a fome no mundo.
Aqui no Vale do Paraiba para muitos é um prazer e um privilégio... Um manjar !
Somente devemos ficar atentos para não comer as Iças provenientes de lugares onde foi usado algum tipo de inseticida.
Encontrei na internet este texto que copio abaixo na integra por ser muito interessante.
E... Sim! Já comi Iça !
Vamos ao texto :
“Saúva ou saúba. Chamada carregadeira, sabitu, formiga de roça. As fêmeas chamam-se tanajuras e constituem acepipe tradicional”.
Luiz da Câmara Cascudo
Uma das tradições indígenas que resiste em toda a região do Vale do Paraíba, é o hábito de caçar e comer içás no mês de outubro, costume que remonta aos primórdios da colonização portuguesa no Brasil. No Maranhão, Frei Ivo d’Evreux, no século XVII, teve a oportunidade de assistir a uma caçada às formigas: “Caçam os selvagens somente as formigas grossas como um dedo polegar, para o que se abala uma aldeia inteira de homens, mulheres, rapazes e raparigas. A primeira vez que vi esta caçada, não sabia o que era, e nem onde ia tão apressada gente, deixando suas casas para correr após as formigas voadoras, as quais agarram, metem-nas numa cabeça, tiram-lhe as asas para frita-las e comê-las” (1).
O Barão de Eschwege, em seu livro “Diário de uma Viagem do Rio de Janeiro a Vila Rica, na Capitania de Minas Gerais no ano de 1811”, registrou o hábito paulista de comer içás: “Ao começar o tempo mais quente do ano, isto é, em outubro, aparecem com asas as formigas grandes, que julgo serem as fêmeas; reúnem-se então aos milhares, à entrada do formigueiro e dali voam em enxame; entretanto, esse estado alado não dura muito; assim cai uma após outra do bando, espalham-se por toda a região. Cada uma, desde que perde as asas, logo trata de cavar a toca e estabelece o novo formigueiro. Na Capitania de São Paulo chamam tanajuras tais formigas. Costuma-se comer as grandes, separar a parte superior e assá-las na frigideira, com toucinho, não sendo mau o seu paladar” (2)
Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos, 4º Conde de Assumar e 3º Governador e Capitão-General da Capitania de São Paulo e Minas Gerais, viajando da cidade de São Paulo para Vila Rica de Ouro Preto, no mês de outubro de 1717, pela Estrada Real do Vale do Paraíba, pernoitou em um rancho de beira de estrada, próximo da Aldeia de São José do Parahyba, atual cidade de São José dos Campos, registrando em seu diário de viagem: “o dono do rancho era um paulista, o qual com generoso ânimo ofereceu a S. Exa. Para cear meio macaco, e umas poucas de formigas, que era com tudo quanto se achava. Agradeceu-lhe S. Exa. a oferta, perguntando a que sabiam aquelas iguarias, respondeu que o macaco era a caça mais delicada que havia naqueles matos circunvizinhos, e que as formigas eram tão saborosas, depois de cozidas, que nem a melhor manteiga de Flanders lhe igualava”.(3)
O naturalista inglês Charles Frederik Hartt, andando pelas selvas da Amazônia em fins do século XIX, escreveu: “Quando estive na Amazônia, ouvi muitas vezes gabar o gosto da saúva. O sabor picante torna completamente impossível o uso da saúva para outro fim que não seja o da especiaria ou condimento. Adicionadas ao molho de tucupi, estas dão-lhe um gosto muito agradável, como posso asseverar por experiência própria”. (4)
Em algumas regiões do Brasil, a içá é torrada, moída e usada como chá, para combate a amidalite e qualquer outro tipo de irritação da garganta. No nordeste brasileiro, a içá é considerada um prato afrodisíaco, aconselhado às pessoas portadoras de inibição sexual e na linguagem popular, tanajuras são as mulheres que tem as nádegas muito grandes.
Monteiro Lobato, em carta a uma prima, moradora em Taubaté, no Vale do Paraíba, escreveu que “a içá é o caviar do povo de Taubaté”.
Eis trechos dessa carta:
“Recebi a latinha da içá torrada... Para mim foi muito bom, porque me rendeu o bilhetinho com o pedido, em troca da içá, de um pensamento sobre a içá...
A sugestão me pertubou, porque nunca no mundo ninguém jamais “pensou” sobre a içá – e pelo jeito é realmente coisa “impensamentável”. Mas, já que me pede, faço um esforço e digo que a içá é o caviar da gente taubateana.
Como você sabe, o famosíssimo e apreciadíssimo caviar da Rússia é a ova dum peixe de nome esturjão; o que é o abdômem (vulgo bundinha) da içá senão a ova da formiga saúva?” (5)
Em “Caminhos e Fronteiras”, Sérgio Buarque de Holanda faz o seguinte comentário: “...A içá torrada venceu todas as resistências, urbanizando-se mesmo, quase tão completamente como a mandioca, o feijão, o milho e a pimenta da terra. Pretendeu-se que os jesuítas, no intuito de livrarem as lavouras da praga das saúvas, tivessem contribuído para disseminar entre os paulistas o gosto por essa iguaria.
(Clique na imagem para ampliar)
Nada há de inacreditável em tal suposição, uma vez que já os primeiros escritos de missionários inacianos em terra brasileira, mencionam a içá como prato saboroso e saudável...” (6)
Caçada e comida de formas diferentes, a içá constitui a alegria e a delícia das populações rurais e urbanas do Vale do Paraíba e durante o mês de outubro, nas tardes quentes e abafadas, crianças, mulheres, velhos e adultos, com varas, galhos de árvores e mesmo com as mãos, ocupam os morros e vales, perseguindo e catando as içás, que, aos milhares, fazem o seu vôo nupcial, atraindo pássaros e homens em busca de alimento, proteína e divertimento, perpetuando uma tradição milenar indígena. As içás, depois de mortas, sem as asas, o ferrão e as pernas, são lavadas em água corrente e torradas com um pouco de gordura ou óleo e sal. Também podem ser comidas como farofa ou fritada e ainda guardadas em latas bem fechadas para serem comidas durante o ano.
Em Silveiras, a Fundação Nacional do Tropeirismo, promove todos os anos, no mês de outubro, o “Festival da Içá”, atraindo pessoas de todas as regiões do Vale do Paraíba e até mesmo de São Paulo e do Rio de Janeiro, para saborearem o delicioso petisco.
José Luiz Pasin
Notas:
1 – Déuvreux, Frei Ivo – Viagem ao Norte do Brasil. Introdução e notas de Ferdinand Denis. Rio de Janeiro, 1929.
2 – Eschwege, Barão de – Diário de uma viagem do Rio de Janeiro a Vila Rica, na Capitania de Minas Gerais no ano de 1811. São Paulo, Revista do Museu Paulista, Volume XXI, 1937, p. 888/889.
3 – Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Rio de Janeiro, volume 3º, 1939, p. 307/308.
4 – Hartt, Charles Frederik – Contribuição para o Estudo da Etnologia do Vale do Amazonas. Rio de Janeiro, Revista do Arquivo do Museu Nacional, volume 125, 1885.
5 – Florençano, Paulo Camilher & Abreu, Maria Morgado –Culinária Tradicional do Vale do Paraíba. Centro Educacional Objetivo, Fundação Nacional do Tropeirismo e JAC Editora. Taubaté, 1992.
6 – Holanda, Sérgio Buarque de – Caminhos e Fronteiras. Livraria José Olympio Ed. – Coleção “Documentos Brasileiros”. Pág. 64. Rio de Janeiro, 1957.
NOTAS DO MUSEU FREI GALVÃO
- A ilustração é de autoria de Paulo Camilher Florençano. Está na pág. 33 do livro “A culinária tradicional do Vale do Paraíba”, de sua autoria e de Maria Morgado de Abreu. Taubaté, 1992. Publicado pelo Centro Educacional Objetivo, Fundação Nacional do Tropeirismo e JAC Editora.
- O mesmo livro, à pág. 91, traz a receita do preparo da içá, à moda de Taubaté: “Limpam-se as içás das perninhas e cabeças. Em seguida, põe-se de molho em água e sal por cerca de ½ hora. Escorre-se bem e leva-se ao fogo, em frigideira com gordura mexendo-se sempre para não queimar. Quando estiverem bem torradas, acrescenta-se farinha de mandioca, mexendo-se sempre, resultando a farofa, já pronta para ser comida acompanhada de café. Se quiser, coloca-se em pequeno pilão, juntando-se a farinha a gosto, daí resultando uma paçoca de içás”.
- É costume no Vale do Paraíba, que, ao caçar a içá, deve-se repetir a seguinte frase, com ritmo característico, selecionando as formigas:
Içá pra baixo
Sabitu pra cima...
- No Estado do Rio de Janeiro a içá é também chamada de Vitu ou Bitu, daí a cantiga:
Cai cai bitu
Cai cai bitu
Aqui na minha mão...
- Conselho final: para se caçar içá à beira do formigueiro, sem ser mordido, deve-se ficar com os pés dentro de uma bacia com água.